2022-10-19
TJSP profere nova decisão contra pagamento antecipado de demurrage para recebimento de vazios

Para advogado, decisão do tribunal tem eficácia apenas entre partes que integram os processos, mas entendimento indica como novos conflitos poderão ser resolvidos, se forem levados ao Judiciário

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) consolidou, recentemente, a ilegalidade da cobrança antecipada de sobrestadia (demurrage) de contêiner, que antes condicionava o recebimento da unidade vazia ao pagamento prévio dessa taxa, ao transportador, por parte do usuário. O advogado Rafael Ferreira, antes de analisar a decisão, explicou que, com a descarga no porto de destino, o usuário tem um prazo livre (“free time”), que é estipulado pela empresa transportadora marítima para a devolução da unidade de carga vazia à sua frota.

De acordo com Ferreira, especialista nos setores marítimo, portuário e aduaneiro, se esse prazo de livre estadia for ultrapassado, é imposto o pagamento de um valor fixo por dia de atraso, até a devolução do contêiner. “Tais cobranças de demurrage sempre ocorreram dessa forma, no Brasil. Isso porque, somente com a devolução do contêiner vazio, é que o transportador encerra a contagem dos dias de demurrage e apresenta sua conta ao usuário. Em alguns casos, para tentar condições melhores em uma negociação com o transportador, é possível que o usuário pague uma parte da sobrestadia em andamento (pagamento parcial), mas essa não é a regra”, informou à Portos e Navios.

Ferreira acrescentou que nada impede que o transportador envie faturas com valores parciais, até para que possa se planejar ou repassar a informação ao usuário final, quando se tratar de um agente intermediário. “Essa é uma postura desejável, inclusive, que mostra transparência”, disse o jurista, que é membro da Advocacia Ruy de Mello Miller (RMM).

Conforme o advogado, o que foi considerado ilegal pela corte de São Paulo é o ato de alguns transportadores de condicionarem o recebimento do contêiner vazio ao pagamento da sobrestadia. “Em outras palavras, sob a alegação de que o usuário já está em atraso e que a demurrage já existe, alguns transportadores estão se recusando a receber os contêineres vazios e informar o local de devolução das unidades vazias, antes do recebimento dos valores totais de sobrestadia”, relatou o jurista.

Para ele, a decisão do TJSP tem eficácia apenas entre as partes que integram os respectivos processos: “Na prática, esse entendimento mostra como novos conflitos semelhantes provavelmente serão resolvidos, se forem levados ao Judiciário. Isso pode fazer com que os transportadores marítimos avaliem essa conduta e suspendam tal prática”, comentou.

O advogado Wesley Bento acrescentou que o condicionamento da sobrestadia era uma prática comum, ao ponto de haver situações em que o Fisco exigia a comprovação do pagamento do valor dessa indenização, para proceder ao desembaraço aduaneiro, o que já foi considerado ilegal na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Mais recentemente, o TJSP reconheceu a abusividade da conduta do armador, que realiza tal exigência. Embora o entendimento não seja vinculante e não seja suficiente para firmar orientação para todo o país, a tendência é que ele seja seguido pelos demais tribunais. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, já acompanharam o entendimento do TJSP”, informou o advogado, que é especialista em Direito da Infraestrutura e Regulação e sócio do escritório Bento Muniz Advocacia.

Conduta abusiva

O TJSP qualificou como abusiva a conduta dos transportadores marítimos, por violação do princípio da 'boa-fé objetiva' e o dever de mitigar o prejuízo (“duty to mitigate the loss”). “Apesar de haver discussão sobre a natureza do contrato entre o transportador e o usuário, para a entrega e devolução do contêiner, o princípio da boa-fé objetiva, em síntese, obriga as partes a agirem sempre com probidade, lealdade, transparência e cooperação, para a boa execução e conclusão dos contratos. Ainda limita certas condutas de ambas as partes, que possam representar um abuso de direito”, salientou o advogado Rafael Ferreira, do RMM.

Para validar sua análise, ele citou o artigo 187 do Código Civil brasileiro, que diz: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Ferreira também explicou que o dever de mitigar o próprio prejuízo nada mais é do que uma consequência do princípio da boa-fé objetiva: “Agindo de forma legal e colaborativa, as partes de um contrato devem agir de todas as formas necessárias e possíveis, para impedir o agravamento de prejuízo decorrente daquela relação”.

Como exemplo da cobrança de demurrage ou sobrestadia, ele exemplificou: “Vamos imaginar que o usuário esteja em atraso de dez dias, para devolver o contêiner vazio ao transportador. Podemos dizer, então, que as duas partes estão sofrendo prejuízos, tanto o usuário em razão da contagem diária de valores de demurrage como o transportador pela falta do contêiner para realizar outros embarques. Nesse cenário, as partes devem agir para mitigar os prejuízos. O usuário deve empreender esforços para devolver o contêiner o quanto antes e o transportador deve fornecer a ele todas as informações e condições para que isso aconteça, assim que possível”.

De acordo com Ferreira, é importante ponderar que, no momento em que o transportador se recusa a receber o contêiner vazio, mesmo diante da informação do usuário de que pretende devolver a unidade vazia imediatamente, age o transportador ilegalmente, em sentido contrário ao princípio da boa-fé e ao dever de mitigação do próprio prejuízo. “É fundamental ressaltar que a demurrage tem incidência diária e que essa recusa – de receber o contêiner vazio pelo transportador – fará com que o prejuízo do usuário aumente a cada dia. E obviamente, essa não seria uma conduta leal e de cooperação para a boa execução e conclusão do contrato. Para o recebimento dos valores de demurrage, os transportadores devem buscar as vias corretas, como o Poder Judiciário, assim como sempre aconteceu”, orientou o jurista.

Ferreira orientou que, antes de ingressar com qualquer ação na justiça, é crucial que o usuário ou o agente de cargas registre todas as mensagens trocadas com o transportador, principalmente as informações relativas à devolução do contêiner vazio. “Se o transportador se recusar a informar o local de devolução ou se recusar a receber a unidade de carga vazia, o usuário deve notificar o transportador de que ele está em mora, enquanto credor daquela obrigação, e que a contagem de sobrestadia estará suspensa a partir daquela data. Além disso, dentro do possível, o usuário deverá informar sobre todos os custos incidentes, a partir da recusa do transportador, como os custos de frete rodoviário, armazenagem, limpeza, entre outros.”

Em situações que excedam ao limite do acordo amigável com o transportador marítimo, o advogado Wesley Bento afirmou que procurar os direitos na justiça acaba sendo o melhor caminho, diante da desavença entre as partes envolvidas. “O usuário poderá buscar determinação judicial para a devolução imediata dos contêineres, independentemente do pagamento de sobrestadia ou de reconhecimento de depósito pelo armador, a fim de purgar sua mora e ser dispensado da evolução do débito de demurrage, bem como do pagamento dos lucros cessantes decorrentes da retenção indevida do bem”, informou o jurista. 

Site: Portos e Navios – 19/10/2022


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