2022-08-25
Setor marítimo carece de mão de obra de profissionais graduados

Instabilidade histórica do segmento naval brasileiro, que alterna períodos de alta demanda com outros de crises extremas, afasta – quase naturalmente – o interesse dos jovens em ingressarem na carreira

Uma investigação realizada pelo escritório LP Law – especializado em Direito Empresarial e Marítimo – em torno das contratações de mão de obra de profissionais com ensino superior, seja para atuação em portos e terminais portuários ou dentro dos navios, apontou que o mercado não disponibiliza um número suficiente de pessoas graduadas, para atenderem à crescente demanda do setor. E a tendência é aumentar esse gargalo em pouco tempo, considerando a chegada de novas plataformas e desenvolvimento de novos campos no Brasil.

Em dezembro de 2021, um relatório da Associação Brasileira das Empresas de Apoio Marítimo (Abeam) informou que a frota em águas nacionais somava 393 embarcações, 19 a mais em relação ao final de 2020. Outros dados da instituição apontaram que o número de concorrências para contratação de embarcações de apoio marítimo no país, entre junho do ano passado e meados de fevereiro de 2022, totalizava cerca de 30 licitações voltadas, principalmente, para a manutenção de frota.

“Nosso levantamento foi feito junto a dezenas de gestores de empresas, que empregam operações de navegação no estado do Rio de Janeiro, e que relataram suas dificuldades de contratação no atual cenário. Ainda fizemos análises de dados das duas escolas de formação de oficiais do país – o Ciaga (Centro de Instrução Almirante Graça Aranha) e o Ciaba (Centro de Instrução Almirante Brás Aguiar) –, sediadas no Rio e em Belém (PA)”, informou a advogada trabalhista Raquel Saab, do escritório LP Law, à Portos e Navios.

Ela destacou que as duas instituições de ensino comportam 600 alunos, em cursos de três anos de duração: “Teoricamente, deveriam ser formados – em média – 400 alunos por ano, mas a realidade tem sido outra. Em média, são formados 300 alunos no Ciaga e no Ciaba, anualmente, sendo 50% em náutica e a outra metade em máquinas. Esses oficiais são facilmente empregados em navios e em áreas técnicas e de HSE (Saúde, Segurança e Meio Ambiente, em português) em terra”.

Para a categoria de guarnição, o problema é similar. “A formação nas duas escolas, em média, é de 60 profissionais em cada uma, um número insuficiente para atender ao mercado. Ainda vale ressaltar que a formação é curta e não há ensino da língua inglesa, o que representa uma barreira para a contratação desses profissionais para atuarem em embarcações estrangeiras”, disse Raquel.

Em sua opinião, a instabilidade histórica do setor naval brasileiro, que alterna períodos de alta demanda com outros de crises extremas, afasta – quase naturalmente – o interesse dos jovens em ingressarem nessa carreira. “Faltam estímulos e políticas contínuas, que podemos apontar como razões para esse déficit de mão de obra.”

A advogada ainda avaliou outro cenário: o fato de que trabalhar no setor marítimo, principalmente dentro dos navios, impõe longos períodos embarcados, longe das famílias, que são alternados por outros dias em terra. “O serviço a bordo também é conhecido por sua dureza, registrando um absentismo elevado e minguando ainda mais o número de profissionais disponíveis.”

Sobre a formação de novos oficiais, Raquel acredita que as escolas estejam bem cientes desse gargalo: “Dados apresentados pela própria Marinha indicam a existência de 1,2 mil profissionais com CIR ativa (carteira de marítimo), mas que não estariam empregados ou estariam exercendo outra ocupação. É preciso que sejam definidas novas iniciativas e politicas, em médio e longo prazo, que visem solucionar esse problema”.

Raquel disse que essa necessidade, em trazer novas soluções em torno da falta de mão de obra portuária graduada, deve considera o atual cenário da indústria aquaviária brasileira, que vem vivenciando um período muito dinâmico e de crescimento. “A Petrobras gera uma forte demanda por serviços e o avanço do agronegócio brasileiro impulsiona o transporte de cargas, tanto de navios brasileiros rumo ao exterior, quanto de navios estrangeiros que seguem ao Brasil para serem abastecidos”, ressaltou.

A advogada também o segmento de cabotagem e hidroviário têm crescido de forma acelerada, ampliando a necessidade de contratar profissionais especializados, para atuarem tanto no setor de operações como em empresas de HSE. “Ainda há as sondas e navios de produção de petróleo, que vão se instalar em nosso país, em maior número a partir de 2024”, acrescentou.

Para ela, todo esse movimento evidencia a urgência por um número bem maior de profissionais qualificados, com domínio do idioma inglês, conhecimento das novas tecnologias e eficiência na capacidade de atuar em um ambiente multicultural.

Tudo isso porque, conforme sua visão de mercado, o Brasil é um país bastante atraente para as empresas estrangeiras: “O setor de óleo e gás e o próprio BR do Mar favorecem a chegada de novas empresas e de novos armadores. A novidade relativa à exploração de energia eólica offshore também abre, igualmente, um espaço para a ocupação da tripulação marítima. É preciso, no entanto, investir em ferramentas e políticas duradouras, visando à formação dos profissionais nacionais”.

“O atual aquecimento brasileiro dos setores de energia e de óleo e gás tem estimulado as contratações de marítimos, mas a falta de profissionais mais qualificados, principalmente oficiais, tem potencial de causar um verdadeiro ‘apagão’ de mão de obra no setor”, alertou Raquel.

Opções de formação acadêmica

Doutor em engenharia oceânica e docente do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor Luiz Felipe Assis lembrou que, no passado, quando o setor portuário foi dominado por empresas públicas e estatais – como Petrobras e Vale –, era muito comum que órgãos de governo buscassem profissionais de engenharia com formação em portos e vias navegáveis.

“Essa formação se caracterizava por disciplinas de graduação, voltadas para áreas de obras de infraestrutura e superestrutura, bem como de planejamento e gestão de portos e hidrovias. Muitos cursos de engenharia civil, com especialização em áreas de transportes ou recursos hídricos, contemplam essa formação”, afirmou.

De acordo com ele, atualmente, outros cursos/disciplinas também contribuem na formação de profissionais, que vão atuar no segmento portuário, como engenharia de produção, engenharia naval e engenharia ambiental. “Aliás, a área ambiental é de importância fundamental para o segmento portuário atualmente”, resumiu.

Assis informou que na Escola Politécnica da UFRJ, por exemplo, o curso de engenharia civil traz ênfases nas áreas de recursos hídricos e transportes, que contemplam disciplinas específicas para o setor de portos e hidrovias. “Também há vários graduandos e recém-formados, que têm sido atraídos para o setor portuário, sendo contratados por empresas como o Porto do Açu (RJ) e a Vale, por exemplo. Sendo assim, posso dizer que há cursos na área de engenharia, que fornecem uma formação básica para atender ao setor portuário”, atestou o professor.

Para ele, uma formação mais completa, certamente, necessitaria de uma especialização a partir de cursos de MBA, mestrado ou doutorado. “Também há alguns cursos – públicos e privados – de tecnólogos na área de gestão portuária, mas normalmente eles são localizados em centros portuários maiores, como o de Santos.”

O professor informou que, atualmente, além de disciplinas voltadas para obras e planejamento, o trabalho portuário envolve a gestão de informações: “A informática e sistemas automatizados estão cada vez mais presentes na área dos portos. Entendo que os portos e empresas ligadas ao setor possam estabelecer programas de trainee ou estágio ou ainda buscarem profissionais dentro das universidades, fazendo divulgação de suas atividades”, sugeriu o doutor em engenharia oceânica, exemplificando que, recentemente, uma empresa do setor realizou uma palestra na UFRJ para o curso de engenharia naval, divulgando seu trabalho e as oportunidades abertas para essa área.

Papel das empresas e academias

Segundo Assis, o meio acadêmico das faculdades e universidades tem um papel fundamental de formação de graduação nas áreas de engenharia e de tecnólogos, assim como de contato com empresas do setor na divulgação de oportunidades. “Por outro lado, o setor portuário também pode buscar parcerias com as universidades, por meio de programas de estágio ou de pesquisa e ensino, que visem atender às suas demandas específicas.”

Conforme o professor, no passado, a UFRJ – por meio do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica – estabeleceu parcerias com a Vale, Petrobras e VLI, ministrando programas de capacitação de recursos humanos e de MBA/Curso de Especialização na área de gestão portuária.

Professor PHD do curso de MBA de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Eduardo Maróstica comentou que a mão de obra portuária é bastante complexa, mas isso decorre do fato de existirem poucos cursos de graduação no país. “Existe uma crise de profissionais, porque poucas instituições de ensino superior oferecem cursos, por exemplo, de gestão portuária ou até mesmo de comércio exterior. Como consequência, a mão de obra de obra é muito mais técnica, sendo ela absorvida totalmente pelo mercado”, avaliou o docente à Portos e Navios.

Maróstica destacou que, atualmente, o salário médio do trabalhador portuário se divide em júnior, com remuneração que varia entre R$ 4 mil e R$ 6 mil; pleno, de R$ 4 mil a R$ 6 mil; e sênior, acima de R$ 10 mil. “O plano de incentivo a essas carreiras, além das faculdades e universidades, também pode vir das próprias empresas aduaneiras e das transportadoras do setor marítimo, entre outras do ramo, por intermédio da criação de cursos, como planos de benefícios para seus colaboradores, de forma que possam desenvolver essa mão de obra na base, retendo esses profissionais e mostrando que eles, a partir da globalização desse mercado, podem ter uma carreira com amplo potencial de crescimento e que paga um salário acima do mercado”, incentivou o professor.

Em relação às faculdades e universidades, Maróstica disse ser necessário ter um novo olhar: “Cabe a elas entenderem que não é por se tratar de cursos com tanta escala, como é o caso de administração de empresas, por exemplo, que não existam oportunidades de mercado. Locais como Itajaí (SC), Santos (SP) e Salvador (BA) – que são regiões portuárias – também precisam desenvolver e estimular essas competências, sobretudo, incentivando a formação e a capacitação da mão de obra mais especializada”.

Site: Portos e Navios – 25/08/2022


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